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O CULTO DE ABSOLEM

No tempo em que a névoa era verbo

e a folha era verso dormindo na flor,

Absolem, o Verme do Saber,

abandonou o galho e se fez rumor.


Virou borboleta — ninguém o viu ir,

sumiu do pomar, do narguilé, do luar...

E o povo, tonto de tanto existir,

sussurrou: "Ziggy o quis devorar."


Ziggy, o Camaleão azul

de tom único e suspeito olhar,

mudava de forma, mas não de cor,

e por isso começou a pesar...


Na ausência do Mestre do Vento Lilás,

subiu-se no topo da tangerineira

uma casa de sonhos, de madeiras sacras,

erguida por bichos carpinteiros da eira.


Cedido o espaço por uma dríade

cheirosa, com coxas de murta e hortelã,

ali se ergueu o Culto da Bruma,

onde a fé flutua e o tempo se desmancha.


Sacerdotes — ora druidas, ora sacis —

com baforadas em papel de seda,

iniciam os crentes no véu lilás

O xedô vem das roupas que Vera dava pra Cida.


A Coca vem de Vanda, a seiva é secreta,

quem bebe levita, delira, sonha.

Os humanos, enrolados em lençóis de seda,

transfiguram-se: ninfas, sátiros, donas.


Mas não entram ali os que tragam memória

de aves de rapina ou ratos devotos:

nada de primos, pais ou patrões,

que um dia roeram a asa dos sonhos.


Gi, alseíde em vestido encantado,

dá aulas de flutuar em tardes espirais,

enquanto mantras em blábláblá sagrado

soam entre sinos, risos e ais.


Mais reverência que culto a Absolem

tem-se apenas ao Mestre do Sonhar,

condutor de realidades cansadas

pra dentro do Reino onde tudo é luar.


Diz-se que o mundo nasceu da fumaça

de seu cachimbo com tangerina e cor.

Da mistura: luz, desejo, planeta,

e até Dirinha dançando com o amor.


Zanza chegou com os elfos do brejo,

teve que amarrar o unicórnio no galho.

Lili doutrina as mênades perdidas,

Vanessa rege as crianças com seu atalho.


Veio do fundo do armário da lembrança

com sua saia azul turquesa de vento,

abrindo passagens, cantando louvores

num coral Eloi de puro encantamento.


Mas eis que Ziggy também sumiu —

dizem que teve um colapso digestivo.

Pois ao comer Absolem tão cheio de enigmas,

explodiu em um arco-íris primitivo.


Esse risco de cor, que no céu flameja

sobre o templo nas horas de culto,

é o ventre de Ziggy transmutado em ponte,

é a lenda... é a luz... é o susto oculto.


[continua...?]


*DGPT Produções

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