No sertão da cor da brasa, Caatinga de assombração,
Iam Zé e sua Catita, rumo à próxima missão.
Na garupa do xilô-cavalo, de crina feita em xilogravura,
Ela ouviu na flor do ipê roxo uma flauta de formosura.
— “Tô estranha, Zé Cambito... o que é isso no meu peito?”
Ele apeou com carinho, mas com pressentimento estreito.
Catita bandeou-se aos poucos... pro lado do som que a chama,
E Zé, sem ouvir nadinha, viu sumir sua dama.
Do chão trincado e ardente, brotou vapor de feitiço,
E nele surgiu Porfírio — flautista de olhar postiço.
Vestia roxo encantado, seu pife era maldição,
Feito de ossos encantados e da última lua do sertão.
— “Ela me segue, cangaceiro, pois a flauta é que decide.
Tua santinha agora dança onde o som dela reside.”
Zé Cambito se aperreia, saca um pífano de herança,
Mas seu sopro, meio torto, mal cutuca a esperança.
Porfírio sopra outra nota — Cambito gira igual peão,
Feito corno em filme velho de Glauber na imensidão.
Caiu que nem saco d’areia, zonzo no pó da estrada,
Enquanto a Catita se perde... na partitura encantada.
As linhas do caderno místico surgiram sob os seus pés,
Levando ela e o flautista para os reinos de Om em revés.
Zé subiu no seu cavalo, já meio trôpego de dor,
Bebendo seu marafo e fazendo repente de amor.
Na encruzilhada seguinte, a tristeza virou fumaça,
Pois quem surgiu no caminho foi Exú, com sua graça.
— “Que cara é essa, cangaceiro? Parece viu assombração!”
Zé rosnou sem muito gosto, mas contou-lhe a aflição.
Exú riu que se acabava, girando seu tridente,
— “Dou-te uma flauta mística se me deres tua aguardente!”
Zé entregou sem pensar — “Leve, mas me arrume um jeito!”
E Exú baforou com força, mandando-o sem defeito...
Nas terras longes de Om, onde Exú o havia lançado,
Zé Cambito, feito brasa, chega o peito aperreado.
Empunha sua viola e com voz de trovador,
Convoca Porfírio à flauta, no repente do amor.
— “Apareça, alma danada, pra ver quem é que encanta!”
E da névoa, o flautista surge com pose tanta.
Frente a frente estão os dois, prontos para começar,
Cada nota, cada sopro, pode o destino mudar.
Porfírio, flautista místico de escola encantada,
Sopra notas impossíveis com sua flauta amaldiçoada.
Caboclas rodopiam, perdidas no torvelim,
Feito mariposa em vela, sem começo nem fim.
Zé Cambito tenta a sorte com a flauta que Exú lhe dera,
Mas não sai som, nem chiado, só poeira da tapera.
Exú, na beira da estrada, gargalha com diversão,
E Zé se sente corno e triste como um cão sem violão.
Mas com voz quase de reza, Zé Cambito pede mais,
Uma chance derradeira antes dos cantos finais.
Porfírio, confiante, concede com certo desdém,
— “Tente, cangaceiro teimoso, mas não vai muito além.”
Zé então recorda um pífano de um tio lá de Caruaru,
E ao pegá-lo com carinho, uma visage logo surgiu.
Padim Ciço, em luz mansa, sussurrou-lhe um segredo:
— “Só com amor no sopro se vence esse arvoredo.”
— “Tira o fel do coração, sopra doce como menino,
Que o som há de abrir caminho até pro mais torto destino.”
Zé Cambito inspira fundo, limpa o peito do rancor,
E sopra como se o mundo dependesse desse amor.
O som que brota do pífano é como vento com flor,
Tão bonito que até Porfírio verte lágrima de dor.
A flauta do assombração começa a rachar no meio,
E as caboclas despertam do feitiço e do anseio.
Catita cai em seus braços, com sorriso de criança,
E Zé Cambito, chorando, volta a ter esperança.
Porfírio, vencido, abaixa o olhar em silêncio,
Mas a emoção lhe sobe feito incenso em sacro templo.
É Catita quem revela sua história esquecida:
— “Foi enganado por um coroné que lhe torceu a vida.
Ele ia fazer nascer um rio no chão rachado,
Mas sem receber seu preço, virou flauta de pecado.”
Com o coração remendado, Zé Cambito dá-lhe a mão,
— “Vamos junto, Porfírio, cantar por esse sertão.
Se tua dor virou canto, se tua flauta chorou,
A poesia te chama, e o amor te perdoou.”
Assim se forma a trupe — trio de riso e rima pura,
Tocando por cada vereda, levando fé e ternura.
Zé, Catita e Porfírio — um cangaceiro, uma flor e um clarim,
Com arte e cantoria... no sertão sem fim.
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